Um
dia desses decidi ir a pé comprar umas coisas num mercadinho que fica a duas
quadras de minha casa, era de manhã, uma linda manhã ensolarada, daquelas que
parecem tornar tudo ao redor mais bonito, mais vivo. Caminhei tranquila, leve, cantarolando
qualquer coisa da qual não me recordo, mas que mostrava a qualquer um que o pé
direito fora o primeiro a tocar o chão naquele lindo dia. Chegando ao
mercadinho, já na calçada delirei ao cheiro delicioso das hortaliças frescas
que estavam expostas na calçada em caixas de madeira apoiadas na parede da
entrada, as folhas molhadas como que pelo orvalho, aquilo parecia precisar
estar ali, tudo parecia perfeito para aquela manhã. Entrei no estabelecimento e,
ainda nos caixas, cruzei com algumas colegas do grupo da terceira idade do qual
faço parte, cumprimentei as meninas, falamos rapidamente sobre nossa última
viagem para o Rio, ao que reagimos com uma boa e calorosa gargalhada, que
acabou por separar silabicamente minha fala “Te-nha-um-bom-dia-vo-cês-tam-bém-que-ri-das”. Fui, então, em busca
de alguns produtos para o meu café da manhã, primeiro o pão e os frios na
padaria aos fundos do mercadinho - por sorte não havia fila, como eu disse, tudo
perfeito para aquela manhã -, em seguida, fui em busca de alguns doces, também
para o café, avistei alguns potes de Nutella
num dos corredores e atinei que ali seria o lugar certo a procurar, garimpei em
buscas de alguns produtos até que uma cena me fez cessar de repente: uma mulher
estava escondendo sob suas calças, de modo muito discreto, dois pacotes de
macarrão instantâneo, ela parecia nervosa, mas não percebeu que eu a vi
escondendo os pacotes, aquilo me deixou extremamente mal, imediatamente pensei
em reagir de alguma forma, mas o nervosismo me deixou literalmente atordoada e
sem reação, contagiada pelo agito que tomara conta do país naqueles dias em
relação à má conduta de nossos políticos, especialmente à do contingente ligado
ao petrólão, eu havia declarado tolerância zero a todo e
qualquer tipo de ato improbo sobre o qual tomasse conhecimento, respirei fundo
e finalmente tomei uma iniciativa: rondá-la, o máximo que eu pudesse, até que
me viesse coragem suficiente para dizer a ela o quanto aquilo me indignava, que
seu ato nada mais era que um exemplo típico de uma característica que parece
estar incrustada em nossa gente: a tendência a trilhar o caminho mais fácil, à
malandragem, à corrupção, que isso é justamente o que se vê na conduta daqueles
que deveriam nos representar e administrar com honestidade a riqueza gerada
pelo suor de nosso trabalho; pois bem, segui a malandra por mais dois
corredores, mas ela não me notava, parecia agir naturalmente, com a exceção de uma
visível preocupação com as horas, isso porque a todo instante as checava num smart phone, o qual, presumi, só podia
ser mais um produto de seus atos ilícitos. Num dado momento, ela parou, contou
algumas moedas e pegou na prateleira um suco de pêssego, desses de envelope
pequeno, mas não o escondeu, pensei comigo que aquele seria o seu modo de
disfarçar sua entrada no mercadinho, ela então olhou para os lados, inclusive
para mim, ao que eu soube disfarçar, esquivando o olhar rapidamente, e caminhou
em direção ao caixa. Segui-a até lá, fiquei logo atrás e a observei pagar pelo
único produto que aparentemente levaria, meu coração estava acelerado, senti
muita raiva de mim mesma por não ser capaz de expressar toda aquela indignação,
por não a entregar de uma vez ao funcionário do caixa, tudo bem que parecia ser
pouco, mas era errado, e como eu disse: eu estava muito contagiada pela onda do
momento, totalmente contra todo e qualquer ato de improbidade. Paguei pelas
minhas compras - nem sabia se havia comprado tudo o que eu precisava - e saí do
estabelecimento sem ao menos desejar um bom dia ao caixa, já na calçada do
mercadinho, decidi agir, de peito estufado, orgulhosa de minha índole
inquestionável, a qual, refleti, não só me permitia, mas me obrigava a lutar
contra aquilo de uma vez por todas, assim como me fizera gritar fora “Dilma, fora PT!” há poucos dias, avistei
a sem-vergonha virando a esquina com o celular no ouvido, fui ao seu encontro
para lhe falar tudo quanto ensaiara até ali, em seguida, planejei, grito aos
funcionários do estabelecimento e pronto. Pois bem, decidida, já ao encontro da
malandra, caminhei firme, ela já havia dobrado a esquina quando a recuperei de
vista, porém, parei imediatamente, fui surpreendida, novamente, do mesmo modo de
quando a vi pegando os dois pacotes de macarrão instantâneo, mas dessa vez, por
vê-la chorar ao telefone, resolvi esperar antes de agir, me escondi atrás da
parede da venda, de modo que pude ouvi-la e vê-la sem que ela me notasse ali,
no começo parecia tudo sem sentido, talvez porque meu coração parecia pulsar em
meus ouvidos, quase me ensurdecendo, mas depois a conversa começou a ficar mais
clara e as coisas começaram a fazer sentido, ela conversava com o seu marido,
chorava aos soluços, mas era um choro de alívio, ela dizia a ele o quanto se
sentia grata a Deus por ele ter ligado a tempo e com uma notícia daquelas: ele
havia, finalmente, recebido por um serviço prestado a alguém, dizia que
certamente Deus ouvira suas orações e tocara
- foi o termo que ela usou - no coração do empregador e o motivara a pagá-lo,
seu choro parecia aumentar quando ela disse ao esposo que Deus agira no momento
exato, que ela havia deixado Julinha - sua filha provavelmente - chorando em
casa naquela manhã, contou ao marido que a menina apontava para a boquinha, e
dizia baixinho, fraca, aos soluços, que tinha fome e que no desespero, deixou a
pequena com a Juliana - deduzi que fosse um familiar - e saiu em disparada para
o mercadinho do Alemão, que nem mesmo os cabelos penteara, tampouco os pés
calçara, o que eu só fui perceber quando ela falou, e que por fim havia
cometido algo que ela jamais se imaginara capaz de fazê-lo, mas que o fizera
por já não estar em seu juízo perfeito, que ficara perturbada diante da imagem
de Julinha rolando no berço, pedindo por comida, ela chorava e dizia ao esposo:
“Eu peguei dois miojo, Bruno, eu tava a
ponto de ficar louca, homem, por favor, me perdoa, vem correndo pro mercadinho
do Alemão, traga o dinheiro, venha me ajudar, Deus ouviu minha oração, porque
Ele sabe que sou honesta, eu poderia ter pedido, mas não sei o que deu em mim,
me ajuda, Bruno, Deus sabe que fiz o que fiz
pela dor de ver meu pedacinho de gente a ponto de morrer de fome”,
sua voz enfraqueceu a ponto de não mais conseguir falar, se apoiou na parede e
desceu lentamente ao chão até se ajoelhar, confusa, ela alternava entre agradecimentos
a Deus e pedidos de desculpas, justificando o erro, logo o esposo chegou,
abraçaram-se e choraram, ele a ajudou a levantar, encarou-a de perto e prometeu
que logo tudo cessaria, que jamais deixaria as coisas chegarem a tal ponto
novamente, ela o abraçou mais forte, como quem realmente confia, depois,
caminharam em direção ao interior do estabelecimento, abaixei a cabeça quando
passaram por mim, esperando que não notassem minha incompreensível cara de
culpa, vergonha e tristeza. Alguns minutos se passaram, e eu percebi que tudo
acabara bem com o dono do mercadinho, o tal do Alemão parecia emocionado ao
comentar o ocorrido com um funcionário que o acompanhava até a calçada, eles
retornaram ao interior do estabelecimento, e eu fiquei ali por um tempo,
enxugando as lágrimas, tentando digerir tudo aquilo de uma vez, minhas lágrimas
e meus pensamentos se confundiam num misto de tristeza e vergonha, demorei para
decidir sobre o que fazer, a beleza daquela manhã já me passava despercebida, pensei
em talvez voltar ao mercadinho para procurar por mais alguns ingredientes que
me pareceram faltar para aquele meu café, calculei mentalmente e arrisquei que
meu dinheiro seria suficiente para comprar mais algumas coisas, quem sabe
alguns gramas de empatia, algumas fatias de amor, talvez um pacote de
humanidade, afinal, só aquilo que eu carregava em minhas sacolas era pouco.
Um heterônimo qualquer
Luis Felipe Souza
Buri, São Paulo, julho de 2016