segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Linda manhã para poucos (Crônica)



Um dia desses decidi ir a pé comprar umas coisas num mercadinho que fica a duas quadras de minha casa, era de manhã, uma linda manhã ensolarada, daquelas que parecem tornar tudo ao redor mais bonito, mais vivo. Caminhei tranquila, leve, cantarolando qualquer coisa da qual não me recordo, mas que mostrava a qualquer um que o pé direito fora o primeiro a tocar o chão naquele lindo dia. Chegando ao mercadinho, já na calçada delirei ao cheiro delicioso das hortaliças frescas que estavam expostas na calçada em caixas de madeira apoiadas na parede da entrada, as folhas molhadas como que pelo orvalho, aquilo parecia precisar estar ali, tudo parecia perfeito para aquela manhã. Entrei no estabelecimento e, ainda nos caixas, cruzei com algumas colegas do grupo da terceira idade do qual faço parte, cumprimentei as meninas, falamos rapidamente sobre nossa última viagem para o Rio, ao que reagimos com uma boa e calorosa gargalhada, que acabou por separar silabicamente minha fala “Te-nha-um-bom-dia-vo-cês-tam-bém-que-ri-das”. Fui, então, em busca de alguns produtos para o meu café da manhã, primeiro o pão e os frios na padaria aos fundos do mercadinho - por sorte não havia fila, como eu disse, tudo perfeito para aquela manhã -, em seguida, fui em busca de alguns doces, também para o café, avistei alguns potes de Nutella num dos corredores e atinei que ali seria o lugar certo a procurar, garimpei em buscas de alguns produtos até que uma cena me fez cessar de repente: uma mulher estava escondendo sob suas calças, de modo muito discreto, dois pacotes de macarrão instantâneo, ela parecia nervosa, mas não percebeu que eu a vi escondendo os pacotes, aquilo me deixou extremamente mal, imediatamente pensei em reagir de alguma forma, mas o nervosismo me deixou literalmente atordoada e sem reação, contagiada pelo agito que tomara conta do país naqueles dias em relação à má conduta de nossos políticos, especialmente à do contingente ligado ao petrólão,  eu havia declarado tolerância zero a todo e qualquer tipo de ato improbo sobre o qual tomasse conhecimento, respirei fundo e finalmente tomei uma iniciativa: rondá-la, o máximo que eu pudesse, até que me viesse coragem suficiente para dizer a ela o quanto aquilo me indignava, que seu ato nada mais era que um exemplo típico de uma característica que parece estar incrustada em nossa gente: a tendência a trilhar o caminho mais fácil, à malandragem, à corrupção, que isso é justamente o que se vê na conduta daqueles que deveriam nos representar e administrar com honestidade a riqueza gerada pelo suor de nosso trabalho; pois bem, segui a malandra por mais dois corredores, mas ela não me notava, parecia agir naturalmente, com a exceção de uma visível preocupação com as horas, isso porque a todo instante as checava num smart phone, o qual, presumi, só podia ser mais um produto de seus atos ilícitos. Num dado momento, ela parou, contou algumas moedas e pegou na prateleira um suco de pêssego, desses de envelope pequeno, mas não o escondeu, pensei comigo que aquele seria o seu modo de disfarçar sua entrada no mercadinho, ela então olhou para os lados, inclusive para mim, ao que eu soube disfarçar, esquivando o olhar rapidamente, e caminhou em direção ao caixa. Segui-a até lá, fiquei logo atrás e a observei pagar pelo único produto que aparentemente levaria, meu coração estava acelerado, senti muita raiva de mim mesma por não ser capaz de expressar toda aquela indignação, por não a entregar de uma vez ao funcionário do caixa, tudo bem que parecia ser pouco, mas era errado, e como eu disse: eu estava muito contagiada pela onda do momento, totalmente contra todo e qualquer ato de improbidade. Paguei pelas minhas compras - nem sabia se havia comprado tudo o que eu precisava - e saí do estabelecimento sem ao menos desejar um bom dia ao caixa, já na calçada do mercadinho, decidi agir, de peito estufado, orgulhosa de minha índole inquestionável, a qual, refleti, não só me permitia, mas me obrigava a lutar contra aquilo de uma vez por todas, assim como me fizera gritar fora “Dilma, fora PT!” há poucos dias, avistei a sem-vergonha virando a esquina com o celular no ouvido, fui ao seu encontro para lhe falar tudo quanto ensaiara até ali, em seguida, planejei, grito aos funcionários do estabelecimento e pronto. Pois bem, decidida, já ao encontro da malandra, caminhei firme, ela já havia dobrado a esquina quando a recuperei de vista, porém, parei imediatamente, fui surpreendida, novamente, do mesmo modo de quando a vi pegando os dois pacotes de macarrão instantâneo, mas dessa vez, por vê-la chorar ao telefone, resolvi esperar antes de agir, me escondi atrás da parede da venda, de modo que pude ouvi-la e vê-la sem que ela me notasse ali, no começo parecia tudo sem sentido, talvez porque meu coração parecia pulsar em meus ouvidos, quase me ensurdecendo, mas depois a conversa começou a ficar mais clara e as coisas começaram a fazer sentido, ela conversava com o seu marido, chorava aos soluços, mas era um choro de alívio, ela dizia a ele o quanto se sentia grata a Deus por ele ter ligado a tempo e com uma notícia daquelas: ele havia, finalmente, recebido por um serviço prestado a alguém, dizia que certamente Deus ouvira suas orações e tocara - foi o termo que ela usou - no coração do empregador e o motivara a pagá-lo, seu choro parecia aumentar quando ela disse ao esposo que Deus agira no momento exato, que ela havia deixado Julinha - sua filha provavelmente - chorando em casa naquela manhã, contou ao marido que a menina apontava para a boquinha, e dizia baixinho, fraca, aos soluços, que tinha fome e que no desespero, deixou a pequena com a Juliana - deduzi que fosse um familiar - e saiu em disparada para o mercadinho do Alemão, que nem mesmo os cabelos penteara, tampouco os pés calçara, o que eu só fui perceber quando ela falou, e que por fim havia cometido algo que ela jamais se imaginara capaz de fazê-lo, mas que o fizera por já não estar em seu juízo perfeito, que ficara perturbada diante da imagem de Julinha rolando no berço, pedindo por comida, ela chorava e dizia ao esposo: “Eu peguei dois miojo, Bruno, eu tava a ponto de ficar louca, homem, por favor, me perdoa, vem correndo pro mercadinho do Alemão, traga o dinheiro, venha me ajudar, Deus ouviu minha oração, porque Ele sabe que sou honesta, eu poderia ter pedido, mas não sei o que deu em mim, me ajuda, Bruno, Deus sabe que fiz o que fiz  pela dor de ver meu pedacinho de gente a ponto de morrer de fome”, sua voz enfraqueceu a ponto de não mais conseguir falar, se apoiou na parede e desceu lentamente ao chão até se ajoelhar, confusa, ela alternava entre agradecimentos a Deus e pedidos de desculpas, justificando o erro, logo o esposo chegou, abraçaram-se e choraram, ele a ajudou a levantar, encarou-a de perto e prometeu que logo tudo cessaria, que jamais deixaria as coisas chegarem a tal ponto novamente, ela o abraçou mais forte, como quem realmente confia, depois, caminharam em direção ao interior do estabelecimento, abaixei a cabeça quando passaram por mim, esperando que não notassem minha incompreensível cara de culpa, vergonha e tristeza. Alguns minutos se passaram, e eu percebi que tudo acabara bem com o dono do mercadinho, o tal do Alemão parecia emocionado ao comentar o ocorrido com um funcionário que o acompanhava até a calçada, eles retornaram ao interior do estabelecimento, e eu fiquei ali por um tempo, enxugando as lágrimas, tentando digerir tudo aquilo de uma vez, minhas lágrimas e meus pensamentos se confundiam num misto de tristeza e vergonha, demorei para decidir sobre o que fazer, a beleza daquela manhã já me passava despercebida, pensei em talvez voltar ao mercadinho para procurar por mais alguns ingredientes que me pareceram faltar para aquele meu café, calculei mentalmente e arrisquei que meu dinheiro seria suficiente para comprar mais algumas coisas, quem sabe alguns gramas de empatia, algumas fatias de amor, talvez um pacote de humanidade, afinal, só aquilo que eu carregava em minhas sacolas era pouco.


Um heterônimo qualquer          
Luis Felipe Souza                       
Buri, São Paulo, julho de 2016